sábado, 7 de junho de 2014

na contramão da audiência


“Meu Pedacinho de Chão”, novela  de Benedito Ruy Barbosa, foi ao ar na Televisão pela primeira vez em 1971. Agora, em 2014, ela volta com uma leitura nova. O diretor Luiz Fernando Carvalho decidiu ignorar as fórmulas tradicionais de audiência televisiva e brincar com o público do horário das seis... O resultado: uma festa de experimentação, visitas inusitadas pela linguagem do Cinema, intervenções divertidas como a cena acelerada,  presença lúdica dos bichos de madeira de outros materiais, que o diretor já usara em outras de suas produções como nas minisséries “Hoje é Dia de Maria” e “A Pedra do Reino”, ambas pela Globo. 
Apesar do colorido do cenário e do figurino, o tema que percorre a história é a política, expressa na sua forma mais simples, com tudo que há de mais natural no costume brasileiro, ou seja,  questões que envolvem a ética, o jogo de interesses particulares, o conservadorismo, a chegada dos novos e ameaçadores ventos dos tempos... É uma história sobre o confronto entre o velho, o arcaico, o tradicional com a novidade, a ciência, o conhecimento avançado. Juliana, a professora,  chega ao arcaico vilarejo de Santa Fé para alfabetizar; Ferdinando, filho do coronel Epa e portando um herdeiro da visão conservadora, vivera fora para estudar e tornara-se  engenheiro agrônomo;  volta a sua terra com ideias renovadas, o que o coloca em confronto com o pai. Renato, forasteiro como Juliana, é o médico que encontrará resistência da população em aceitar seus métodos, pois onde não há medicina, todos se acostumam com a crendice e no vilarejo, por muitos anos, o socorro para saúde vem da benzedeira e parteira Mãe Benta.
Política em todos os sentidos... eis o tema da novelinha com cara de programa infantil, com seu excesso de cores, seus bichos de madeira e suas crianças, os espertos Serelepe e Pituca.  Nessa estranha comunhão da linguagem infantil com a política a novela não poupa o público nem da referência à violência. Mas faz isso com um equilibrado jogo psicológico: os personagens belicosos da novela, Gina e Zelão, são também as maiores vítimas da própria imagem. São vistos como perigosos, inconsequentes, prontos para atirar, prontos para matar, enraizados numa visão onde a autoridade máxima está no Pai (no caso de Gina) e no patrão (no caso de Zelão). Mas esses poderes começam a perder a força à medida que os personagens se deixam enveredar pelas mudanças trazidas pelo Novo: Ferdinando (no caso de Gina) e Juliana (no caso de Zelão).
Mas o tema em “Meu Pedacinho de Chão” compete com tantos artifícios que quase não se tem tempo para torcer para esse ou aquele, mesmo porque os vilões (diferentes de outras novelas) não oferecem motivos para ódio ou repulsa.  Entre tantos artifícios os efeitos,  as posições da câmera, a grandiosa poesia das imagens, oferecem tanto deleite que é fácil assistir por assistir, sem intenção de se divertir, apenas por ver, deliciar-se com cenas majestosas, como a que foi ao ar esta semana: Juliana e Zelão na igreja, aguardando a chuva passar para saírem, depois de os dois terem uma conversa cheia de tensão. Aliás o texto dos atores mereceria um artigo exclusivo. Mas vamos nos concentrar nas imagens... câmera colocada na altura da cintura dos atores, focando o rosto, acabam revelando o teto dos cenários; close up nos rostos dos atores podem revelar nascentes de lágrimas ou veias faciais como nunca se viu em televisão;  cenas distanciadas mostram simultaneamente vários cenários ao mesmo tempo. Sobre a intervenção das cenas aceleradas já falei. Tem também aquele efeito, que acredito ser  próprio do Cinema, que consiste em fechar horizontalmente uma cena em algum momento. São muitos os truques; a exposição dos efeitos percorrem os capítulos, sem aviso prévio. Quando menos se espera, o efeito surge na tela e nos enche os olhos. 
Outro motivo de fascínio está num recurso que volta e meia também aparece: são sequências breves de imagens que fazem referência a um desejo de um personagem, uma imaginação ou um flash back dentro da narrativa, como foi a bela sequência para explicar porque as armas de Zelão estavam descarregadas. Era preciso contar como isso havia acontecido; então usou-se uma rápida volta no tempo, com a voz da Mãe Benta em off, dando ao telespectador a informação de que fora ela quem havia tirado a munição das armas. Sem dúvida, poucas vezes vi em televisão uma imagem tão rápida mas tão bonita quanto essa tal revelação. 

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